Calçadão
Proposta de um espelho ao longo da esquina do SESC 24 de Maio na altura da calçada.
A ideia surgiu no contexto da “revitalização” do centro, onde o Anhangabaú e o Triângulo Histórico são os principais alvos da prefeitura.
Uma das intenções da “revitalização” é trocar o revestimento do Calçadão e, entre outras melhorias, remodelar as calhas pluviais, aplicar pisos táteis, organizar os dutos de telefonia, além de uma proposta de arborização.
A primeira etapa do projeto está aprovada com diretrizes que tratam de salvaguardar algum testemunho do revestimento existente, ou até sua integralidade. Neste grupo, estão incluídos os pisos do Patriarca, Sé, Chá, SF, Memória, Dom José Gaspar, a frente da BMA e do Teatro Municipal.
O Departamento de Patrimônio Histórico DPH, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental CONPRESP e o Instituto de Arquitetos do Brasil IAB, entre outras entidades, aprovaram a primeira etapa com unanimidade. (fevereiro de 2020)
A primeira etapa abrange a região da Praça Antônio Prado, onde está a Bolsa de Valores, e prossegue pela rua São Bento, João Brícola, rua do Comércio, 15 de Novembro e Largo do Café. A elaboração do projeto já leva 2 anos. Embora o projeto já devesse estar sendo implantado, ele não está totalmente divulgado e as licitações continuam em andamento.
1_ O tapete
Se forem à Biblioteca do Departamento de Urbanismo da Prefeitura, peçam pra ver o projeto do calçadão de 1976. Lá está o desenho de suas pedras, os cortes e todas as etapas de implantação, até projetos mais recentes como da Sete de Abril, feita em 2016.
A ideia das placas cinzas é tornar a manutenção fácil e rápida. A solução propõe um desenho de mosaico português entre as placas, fazendo o acabamento. Para manutenção, as placas e as pedras do mosaico são removidas e logo reaproveitadas para refazer o encaixe. Há 40 anos temos feito a manutenção assim.
Dentre as centenas de empresas terceirizadas, seja da prefeitura ou das concessionárias, não há uma equipe que não saiba o que é a calçada portuguesa. Todas ao seu modo estão fazendo seu xadrez, ou “vidraço”, como em Portugal os calceteiros chamam sua obra.
Observando de perto, vemos estes calceteiros compensando o volume das pedras para deixar a melhor face aparente, guardar as irregularidades para dentro do piso e deixar a composição estável e sólida. Um jogo de combinar e repetir a pedra em poucos minutos.
O piso desta esquina foi inaugurado no natal de 1976. As placas de inauguração de granito vermelho resistem na Barão de Itapetininga e no Largo do Lavradio. O projeto foi coordenado pelo urbanista Ernest Mange e construído pela Camargo Correa, a mesma mega-construtora que implantou o metrô e a maioria das obras da ditadura.
Junto com a novíssima praça da Sé, herdamos um tapete caro. O calçadão exibe até hoje seu mármore branco, com pedras lascadas à mão, retiradas dos maciços rochosos ao lado de Curitiba. E as placas quadradas de granito cinza, as mesmas das plataformas do metrô, extraídas de afloramentos de rocha nua na Serra do Mar, em Mauá.
Se observarmos o alinhamento das grelhas pluviais vamos notar que o leito carroçável foi preenchido e as grelhas foram posicionadas nas bocas de lobo existentes, o alinhamento entre elas revela o limite entre a rua e a calçada antiga.
Este é um detalhe entre as centenas de remendos, dobras e calombos que, se nos detivéssemos a estudá-los, faríamos emergir o que negociamos e o que apagamos, e também o que nos foi imposto em 1976, para chegar nesta praça-calçada que liga todos os largos da cidade.
2_ O ponto
Em Salvador, antes da remoção da calçada portuguesa no Porto da Barra, o antropólogo Ordep Serra, em 2008, argumentou que a retirada do mosaico era a própria depredação dos edifícios históricos do seu entorno, que ao remover o piso, o próprio edifício perdia sua identidade e ficava descaracterizado. Foi uma boa defesa, vale a leitura, no entanto, as pedras acabaram sendo removidas.
Se olharmos o Calçadão de uma perspectiva topográfica, veremos que seus passeios guardam de um lado do Anhangabaú a trama peninsular do triângulo. E do outro, uma quadrícula arejada de poucos quarteirões, exatamente onde se encontra o SESC.
Talvez porque São Paulo ficou séculos parada, suas ruas, especialmente do Triângulo, se agarraram ao relevo tão perfeitamente, que parecem reproduzir os rios que delineiam a península.
Como na defesa de Salvador, as pedras do Calçadão, a Mauá e a Paraná, unem todos os largos do centro numa trama de mosaico português. Não só aqueles três fortes de Salvador se expressavam pelos pisos, aqui também, os próprios largos e praças de São Paulo se amarram pela pedra.
Assim, a pedra se repete pelo calçadão, a pedra do Largo São Francisco é a mesma da Praça Patriarca, da Misericórdia, do Pátio, do Chá, do Café, da Praça Antônio Prado até o centro novo. O Calçadão do Triângulo, definido pelos rios e pontuado de igrejas abre caminho, cruzando as rotas mais antigas da cidade, como se estivéssemos num ponto feito destas pedras.
3_ O buraco
Portanto, o Calçadão não deve ser tratado como o resto das calçadas da cidade. Sua natureza é de Arena Pública. Não nos serviria andar sobre o Calçadão como se estivéssemos apenas sobre uma eficiente calçada onde o proprietário adjacente tomou a iniciativa de cuidar do revestimento.
Sobretudo, penso que deveríamos estar focados também nos ambulantes, nos moradores de rua, e nas pessoas que moram nas ocupações. Como arquitetos, estar desenhando albergues, postos de atendimento médico, banheiros públicos e projetando para regularizar as ocupações, trazendo moradia para o centro.
Portanto, o projeto para o calçadão, sem fazer uma ampla ação de justiça social, sem as consultas públicas, sem apresentar o projeto completo, vai continuar deixando aberto o maior dos seus buracos.
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Trecho de uma carta do cientista português Acácio Nobre (publicado pela editora Dublinense em 2018), diz ele:
“Lasco uma pedra, deixo-a no chão e fico à espera que ela se mova. A pedra é uma comissão. É uma arte por encomenda e por isso tem contrato, um contrato que não se pode garantir porque na prática todos podemos morrer amanhã.
(…)
A pedra é uma comissão mas a pedra não sabe, e porque não sabe, e porque a lasquei, a pedra passa a ser minha, passa a pertencer a alguém sem rede e sem passaporte; mas ainda não é obra, está por concluir. A pedra, para ser obra, precisa de um nome. A pedra para ser obra precisa de bons olhos que a vejam.
(…)
Sem outra alternativa, a pedra espera que o tempo a molde, que o tempo a mude de chão. Uma pedra lascada para que seja obra precisa de um chão de mármore, ou de uma passadeira vermelha, ou de um cartaz que a anuncie.
(…)
A pedra que ainda não tem título mas que já tem olhos e que por isso já é, ou pode vir a ser, mais do que uma pedra. A pedra cresce assim mesmo sem sair do lugar. Nem mudar de chão. Só por causa de seu olhar.”
Andrés Sandoval, 1973, artista, trabalha em São Paulo. Desde 2003, desenvolve livros, estampas, murais e exposições. Estudou arquitetura na Universidade de São Paulo e publica seus desenhos pela Cia. das Letras, Todavia, Ubu e na revista Piauí. Desenhou as estampas da Neon e da Irrita e os murais da Fundação Bradesco, em Bodoquena.
Participou da X e XII Bienal de Arquitetura de São Paulo, da exposição Cidade Gráfica, Itaú Cultural e Linhas de Histórias, SESC Santo André, Campinas e Araraquara. Entre seus parceiros de arquitetura e design, Rosenbaum, Grupo SP, PS2 Design, Bloco Gráfico.